5 Poemas de Claribel Alegría (Nicarágua, 1924-2018)

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Curadoria de Floriano Martins
Tradução de Gladys Mendía

Claribel Alegría (Nicarágua, 1924-2018). Poeta, narradora, ensaísta e tradutora. É considerada uma das grandes vozes da literatura nicaraguense. Estudou Filosofia e Letras na Universidade George Washington. Mantinha uma estreita amizade com figuras proeminentes da literatura latino-americana, como Juan Rulfo, Julio Cortázar, Carlos Fuentes, Mario Vargas Llosa e Mario Benedetti. Entre seus livros, destacam-se: Anillo de silencio (1948), Vigilias (1953), Acuario (1955), Huésped de mi tiempo (1961), Vía única (1965), Aprendizaje (1970), Pagaré a cobrar (1977), Poesía viva (antologia, 1983), Umbrales (1997), Mitos y delitos (2008), Otredad (2011) e Voces (2014). Por sua obra poética, recebeu importantes reconhecimentos, incluindo o Prêmio de Poesia Casa das Américas, Cuba (1978); a Ordem das Artes e das Letras do governo francês (2004), o Prêmio Neustadt (2006), a Ordem Gabriela Mistral (2010) e o XXVI Prêmio Rainha Sofia de Poesia Ibero-Americana da Universidade de Salamanca e do Patrimônio Nacional da Espanha (2017), este último pelo conjunto de sua obra.


ARS POÉTICA

Eu,
poeta por ofício,
condenada tantas vezes
a ser corvo
jamais me trocaria
pela Vênus de Milo:
enquanto reina no Louvre
e se morre de tédio
e junta poeira
eu descubro o sol
todos os dias
e entre vales
vulcões
e despojos de guerra
vislumbro a terra prometida.


AUTORRETRATO

Olhos arruinados
A menina temerosa oblíqua,
os cachos desfeitos.
Os dentes, quebrados.
Cordas tensas me subindo pelo pescoço.
As bochechas polidas,
sem feições.
Destroçada.
Apenas os fragmentos me restam.
Os trajes daquela época se gastaram.
Tenho outras unhas,
outra pele,
Por que sempre a lembrança?
Houve um tempo de paisagens quadriculadas,
de pessoas com olhos mal colocados,
narizes mal colocados.
Línguas saindo como espinhos
de bocas aflitas.
Eu também não me encontrei.
Continuei procurando
nas conversas com os meus,
nas salas de conferência,
nas bibliotecas.
Todos como eu
rodeando o vazio.
Preciso de um espelho.
Não há nada para cobrir o buraco.
Apenas fragmentos e a moldura.
Fragmentos pontiagudos que me ferem
refletindo um olho,
um lábio,
uma orelha,
Como se eu não tivesse rosto,
como se algo sintético,
instável,
oscilasse nas quatro dimensões
escorregando às vezes nas outras
ainda desconhecidas.
Mudei de formas
e de dança.
Vou morrer um dia
e não sei do meu rosto
e não posso me virar.


ALTERIDADE

Eu gosto dos espelhos
porque observo
a outra
que tira a máscara e me desafia.


DÊ-ME A SUA MÃO

Hoje eu gosto muito menos da vida,
mas sempre gosto de viver…

CÉSAR VALLEJO

Dê-me a sua mão
amor
não deixe que eu afunde
na tristeza.
Meu corpo já aprendeu
a dor da sua ausência
e apesar dos golpes
quer continuar vivendo.
Não se afaste
amor
me encontre no sonho
defenda a sua memória
minha memória de você
que não quero perder.
Somos a voz
e o eco
o espelho
e o rosto
me dê a sua mão
espere
tenho que ajustar o meu corpo
para alcançá-lo.


CARTA AO TEMPO

Prezado senhor:
Esta carta eu escrevo no meu aniversário.
Recebi o seu presente. Não gosto.
Sempre a mesma coisa.
Quando criança, ansiosa eu o esperava;
me vestia de festa
e saía à rua para anunciá-lo.
Não seja tão persistente.
Sempre e sempre a mesma coisa.
No início, suas visitas eram esporádicas;
tornaram-se muito rapidamente cotidianas
e a voz do avô
foi perdendo o seu brilho.
E você insistia
e não respeitava a humildade
de seu caráter doce
e seus sapatos.
Então, me cortejava.
Eu era uma adolescente
e você, com esse rosto que não muda.
Amigo do meu pai
para ganhar meu coração.
Coitadinho do avô.
Em seu leito de morte,
você estava presente,
esperando o fim.
Um ar inesperado
pairava entre os móveis.
As paredes pareciam mais brancas.
E havia mais alguém,
você fazia sinais para ele.
Ele fechou os olhos do avô
e ficou um tempo me contemplando.
Proíbo você de voltar.
Toda vez que eu os vejo
um arrepio percorre minha espinha.
Não me persiga mais,
eu lhe suplico.
Há anos que amo outro
e suas ofertas não me interessam mais.
Por que você sempre me espera nas vitrines,
na boca dos sonhos,
sob o céu indeciso de domingo?
Seu cumprimento tem gosto de quarto fechado.
Eu o vi com as crianças.
Reconheci seu terno:
o mesmo tweed da época
quando eu era estudante
e você amigo do meu pai.
Seu ridículo terno de meia-estação.
Não volte,
eu repito.
Não pare mais no meu jardim.
As crianças ficarão assustadas
e as folhas caem:
eu as vi.
Para que serve tudo isso afinal?
Você vai rir por um tempo
com aquele riso eterno
e continuará aparecendo diante de mim.
As crianças,
meu rosto,
as folhas,
tudo perdido em suas pupilas.
Você vencerá sem dúvida.
No começo da minha carta eu já sabia disso.

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