5 Poemas de Oliverio Girondo (Argentina, 1891-1967)

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Curadoria e tradução de Floriano Martins

Um êxito eventual nos seria capaz de convencer de nossa mediocridade? Não teremos uma dose suficiente de estupidez, ao ponto de sermos admirados?… Até que alguém contesta a insinuação de algum amigo: “Para que publicar? Vocês não o necessitam para me estimar, os demais…”, porém como o amigo resulta ser apocalíptico e inexorável, nos replica: “Porque é necessário declarar, como o fizeste, guerra ao sobretudo que em nosso país leva a todos os lugares; ao sobretudo com que se escreve em Espanha, quando não se escreve de golinha, de sotaina ou em mangas de camisa. Porque é imprescindível ter fé, como o tens, em nossa fonética, desde que fomos nós, os americanos, que oxigenamos o castelhano, tornando-o um idioma respirável, um idioma que pode ser usado cotidianamente e escrito de ‘americana’, com a ‘americana’ nossa de todos os dias…”. E eu me ruborizo um pouco ao pensar que acaso tenha fé em nossa fonética e que nossa fonética acaso seja tão mal-educada ao ponto de ter sempre razão… E fico pensando em nossa pátria, que tem a imparcialidade de um quarto de hotel, e me ruborizo um pouco ao constatar o difícil que é apegar-se aos quartos de hotel.

Publicar? Publicar, quando até os melhores publicam 1.071% vezes mais do que deveriam publicar?… Eu não tenho, nem desejo ter, sangue de estátua. Não pretendo sofrer a humilhação dos pardais. Não aspiro que babem a tumba de lugares comuns, já que o que interessa realmente é o mecanismo do sentir e do pensar. Prova de existência!

O cotidiano, contudo, não é uma manifestação admirável e modesta do absurdo? E cortar as amarras lógicas não implica a única e verdadeira possibilidade de aventura? Por que os gestos dos que há 70 séculos estão sob a terra? E qual seria a razão de não admitir qualquer probabilidade de rejuvenescimento? Não poderíamos atribuir, por exemplo, todas as responsabilidades a um fetiche perfeito e omnisciente, e termos fé na prece ou na blasfêmia, no risco de um aborrecimento paradisíaco ou na voluptuosidade de condenarmo-nos? O que nos impediria de usar as virtudes e os vícios como se fossem roupa limpa, convir que o amor não é um narcótico para o uso exclusivo dos imbecis e ser capazes de passar junto à felicidade fazendo as vezes de distraídos?

OLIVERIO GIRONDO / Trecho do prólogo de Veinte poemas para ser leídos en el tranvía. Buenos Aires. 1922.

***

Para Girondo a poesia constitui a forma mais alta de conhecimento, uma intuição total da realidade, com uma autonomia irredutível, portanto, a uma linguagem de relações estabelecidas. “É necessário declarar guerra ao sobretudo, que em nossos dias leva a todos os lugares” – declara na carta incluída na edição de bolso de Veinte poemas. E em outra parte da mesma: “Não tenho nem desejo ter sangue de estátua”. Trinta e cinco anos mais tarde confirmará o mesmo sentido: ao poema “há que buscá-lo ignífero superimpuro leso / lúcido bêbado / inóbvio”. Não teme incorporar à sua visão o que um lirismo caramelado considera “feio”. Porém esse “feísmo” não é outra coisa que o amor por todas as formas do mundo, fora de suas conotações humanas, em sua pureza primordial. Ante o trágico resplendor da existência as convenções estéticas se quebraram. Girondo tem o mal gosto de mover-se como um animal inocente, o mal gosto exaltante de chegar até sua própria nudez, no desamparo sem limites do ser.

ENRIQUE MOLINA / “Hacia el fuego central o la poesía de Oliverio Girondo”, prólogo das Obras completas de Girondo. Buenos Aires. 1968.


É A BABA

É a baba.
Sua baba.
A efervescente baba.
A baba hedionda,
cáustica;
a negra baba rançosa
que baba esta espécie babosa de alimárias
por seus ruminantes lábios carcomidos,
por suas pupilas de ostra putrefacta,
por suas turvas bexigas empedradas de cálculos,
por seus velhos umbigos de ponteira gasta,
por suas corcovas plenas de interesses compostos,
de ações usurárias;
a pestilenta baba,
a boba doutorada,
que envergonha a felpa das bancas com dieta
e outras brandas poltronas não menos cuspidas.
A baba tartamuda,
adesiva, viscosa,
que impregna as paredes forradas de cortiça
e contempla o desastre através da algibeira.
A baba dissolvente.
A acre baba oxidada.
A baba.
Sim! É sua baba…
o que enferruja as horas,
o que perverte o ar,
o papel,
os metais;
o que infecciona o cansaço,
os olhos,
a inocência,
com seus vermes de asco,
com seus vírus de fastio,
de idiotice,
de cegueira,
de mesquinhez,
de morte.


ENCALHADO NAS COSTAS DO PACÍFICO

A Enrique Molina

Corta os dedos múmias
a jugular marinha
dos hóspedes com suas algas que dobram tua pensativa omoplata de chuva
a veia de presságios que lavram em tua areia os caranguejos escribas
o tendão que te amarra a tanto ritmo morto entre gaivotas
e foge com tua pestanejante estátua terráquea
sem um mítico corno sob a neve menina recostada em tuas têmporas
porém com onze antenas fluorescentes investindo o mistério.

Foge com ela em chamas do braço de seu medo
toma-a das rosas se preferes em chagas a casca
porém abandona o eco desse hipomar hidrófobo
que fofopolvoduende te dilata o abismo com seus viscosos zeros absorventes
quando não te transmuta em migratório voo circunflexo de nostalgias sem rumo.

Furiosamente afasta tua Sigismunda rata introspectiva
tua teia de aranha faminta
desse ultramundo enteado de lava em mística abstinência de cactos penitentes
e com teu cãoarcanjo aureolado de moscas
e tuas fiéis polainas melancólicas
de sonhos dissecados e gritos de desbaste cor de crime
foge com ela dentro de teu claustral aroma
mesmo que seu céuinferno te condene a um eterno “Te quero”.

Deixa até desprender-se a cálida folhagem que brota de tuas mãos
junto a esse móvel totem de coxas água viva
flagela-te se queres com as violentas tranças que furtaste do esquecimento
porém por mais que sofras em cada cruz vazia uma paixão suicida
e tua própria cisterna com semivirgem lua reclame tua cabeça
já sem veleiro ocaso
nem chicha de pestanas
nem caixas onde lateja a agônica seca
foge pelos caminhos que arrancam de teu peito
com teu filho entre parênteses
teu formigueiro de espectros
tuas bisavós lâmpadas
e todas as frutíferas lembranças florescidas que alimentam tua sesta.

Foge com ela envolto em seu orquestral cabelo
e seu olhar sigilo
mesmo que te cruzes de asas
e o averritmo ferido que aninha no dorso onde te sangra o tempo
entardeça seu canto entre seus seioslotos
ou em seus braços de estátua
que perdeu os braços em altares de vestais e faunos inumados
e foge com tuas grilhetas de prófugo perpétuo
teu nimbo sem eclipses
teus desnudos complexos
e o sempiterno talho de fluviais trevas que te partem os olhos
para que vertam coágulos de rançosa angústia pai
impulsos pré-natais
e meteóricas ânsias que lhe mordam os crótalos
os sonhoscobras do leito onde rema ambarmente desnuda
tua ninfomaníaca estrela
enquanto teu corpo grasna um “Nunca mais” de pedra.


HÁ QUE BUSCÁ-LO

Na eropsiquis plena de hóspedes então meandros de espera ausência
enluadas coxas de estival epicentro
tumultos extradérmicos
escoriações febre de noite que burmua
e aonda aonda aonda
ao abrirem-se as veias
com um peixelampo na nuca do sonho
há que buscá-lo
o poema

Há que buscá-lo dentro dos pressorvos de ócio
desnudo
desqueixume
sem raízes de amnésia
nos lunihemisférios de refluxos de coágulos de espuma de meduas de areias dos seis ou talvez em ânditos com alento a raposino
e a ruminante distância de santas mães vacas
fincadas
sem auréola
ante charcos de lágrimas que cantam
com um peixevéu em transe sob a língua há
que buscá-lo
o poema

Há que buscá-lo ignífero superimpuro leso
lúcido bêbado
inóbvio
entre epitélios de alvorada ou ressacas insones de solidão em crescente
antes que se dilate a pupila do zero
enquanto o endoinefável incandesce os lábios de subvozes que brotam do intrafundo eufônico
com um peixegrifo arco-íris na mínima praça da
frente há que buscá-lo
o poema


ATÉ MORRÊ-LA

O palpável o mórbido
a concha funda ardida de tantúrbios
as tensas sondas fundas os refluxos as ondas da carne
e seus pistilos núbeis contrácteis
e seus anexos ninhos
os languiformes férvidos subsubornos inúmeros do tato
seu mosto azul desnudo
cada lista
cada veia do sonho do eco do sangue
as soníloquas noites do alto coaxar celeste que nos animabismam o solilóquio vertigem
quanto adere sem costas ao fluir o pulso ao rubro cosmogozo
e seus rostos vazios
e suas gargantas
até morder a terra
o ignoto noto curvo ao ver do ser o ósseos os impactos do pasmo de mais corda
qualquer estar em chaga
os dons dados onde se internevoam as órbitas os sorvos da euforia
qualquer velar velado com atento esqueleto que se pensa
a estéril fátua esteira
o microacaso do germe do móvel do encontro
os entões já prófugos
a busca em si gratuita
os mitinhos
até ingerir a terra
todo modo poroso
o poço lato único do fosso imerso adentro
a sede de sede sectária os finitos abraços
toda boca
o tanto
o amor pertinaz a tudo
o amormor preamante em cúmulo gomo totem de amor de amor
a marca
amor gorgôneo médium ondavecabracobra delíquio ereto inteiro
que ulululululula e arpejalibarranha o ego sopro centro
até exalar a terra
com seus astróides trinos suas espécies e multichamas línguas e excrecrenças
seus búzios laços lares de complexos incestos entre ossos correntes sem desaguamentos
seus convizinhos mortos de memória
sua luz de messe desnuda
suas axilas de seste
e seu giro fundo lodo não menos menos que outros afins cogirantes
até o desmame débil
até a despersuasão neutra
até morrê-la


ANTE O SABOR IMÓVEL

Todas as intermédias podretêmporas de espera de esqueleto de chuva sem pessoa
quando não neutros lapsos micropolvos engendros do soutédio
podem antes que côncavos ausentes em seminal jazência
ser outros fluxos ácidos do diurno sonho insone
outros sorvos de páramo
tão vis vivas bílis de nonadas carcomas diametrais
mesmo que o sabor não mude
e Ofélia pura costa seja um pescado reflexo de rocio de esclerosada túnica sem lastro
um fóssil loto amóvel entre remansas coxas puras juncos de espasmo
um maxilar de lua sobre um canto rodado
terno espectro flutuante do novilúnio arcaico dromedário
longe já de seu neuro dubitabundo exnoivo psiquissalgueiro
mesmo que o sabor não mude
e qualquer lasso coalho invista novos ocos ante os idem lodos expartos bocejantes
peste com veste hóspedes do macrobarro grávido de morte
e goros logros de horas lacrimais
mesmo que o sabor não mude
e o menos eu do um no total por nada
beato salto de excoito amodorrado malentetando o asco
explore os estratos de seu âmbito sem sina
cada vez menos cratera
mesmo que o sabor não mude
cada vez mais borbulha de algânima não náiade
mais amplo menos trânsfuga
após suas estanques têmporas de mercúrio
ou nas finais enseadas do obsceno de marismas de pelve sob a água
com seu não pranto areia e nuas mínimas mortes navegáveis
mesmo que o sabor não mude
o somente ereto espesso mascadúvida insaciado em progressivo resto
ante a incerta ubíqua muito quem sabe incógnita deífica malcinja a angústia interrogante
mesmo que o sabor não mude

1 comentário em “5 Poemas de Oliverio Girondo (Argentina, 1891-1967)”

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