Jorge Carrera Andrade (Equador, 1902-1978)

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Curadoria e tradução de Floriano Martins

De maneira especial, agradeço a breve nota que a revista dedica, em seu último número, à minha conferência ditada no Instituto de Cultura Hispânica de Paris, sob o título de Retrato cultural do Equador. Em seu afã de imitação das escolas europeias, o autor da nota crítica afirma que esse “Retrato” é “figurativo”, quando ele o teria desejado “abstrato”. Porém, afora este e outros reparos de menor vulto, o tom da nota é elogioso e merece, como já te disse, meu agradecimento, já que essa atitude de compreensão é rara nesta época sem generosidade.

[…]
Acabo de regressar da Bienal Internacional de Poesia, celebrada em Kuoke-le Zoute, Bélgica, e ali justamente intervi na discussão do tema “O poeta e o mundo material”. Volto agora a confirmar o que disse em minha exposição: os poetas greco-latinos foram “poetas das coisas” (Horácio, Virgílio, Lucrécio etc.). Essa grande linha ou linhagem da poesia objetiva se interrompeu com os fantasmas e os chamuscos da Idade Média, com a cegueira de Milton e de outros que não quiseram ver e, logo em seguida, com as névoas do Romantismo. Porém, a poesia do objeto, a poesia da realidade do mundo, seguiu sua marcha subterrânea com Góngora e Quevedo, e com toda uma geração de poetas franceses, na raiz do Simbolismo, e culminou em nossa América com os poetas do pós-modernismo (Huidobro, Neruda e outros).

Quero deliberadamente ver o mundo, apreendê-lo com todos os meus sentidos (com preferência para meu sentido visual) sem fazer caso das ilusões febris e inconsistentes que se desfazem ao menor sopro. Como já disse várias vezes, meu anseio é oferecer com minha poesia um fruto maduro e não uma inútil bolha de sabão. Creio que a poesia não consiste em “brincar de gênio”, imitar pessimamente os surrealistas, destruir a linguagem e, em suma, apresentar uma estranha prosa em linhas mais ou menos curtas. A grande poesia será sempre uma “Ars Poeticae” e não um logogrifo improvisado e indecifrável.

Bem, já me estendi demais sobre este ponto. Fica, contudo, tanto ainda por dizer!

JORGE CARRERA ANDRADE
Trecho de carta dirigida a Juan Liscano. Revista Zona Franca # 25. Caracas. 1965.


O OBJETO E SUA SOMBRA

Arquitetura fiel do mundo,
realidade, mais completa que o sonho.
A abstração morre em um segundo:
Para tanto basta franzir a testa.

As coisas. Ou seja, a vida.
Todo o universo é presença.
A sombra aderida ao objeto
acaso transforma sua essência?

Limpe o mundo – esta é a chave –
de fantasmas do pensamento.
Que o olho equipe sua nave
para uma nova descoberta.


A JORNADA INFINITA

Todos os seres viajam
de modo distinto até Seu Deus:
A raiz desce degraus de água.
As folhas preparam a nuvem com suspiros.
Os pássaros se servem de suas asas
para alcançar a região das luzes eternas.

O mineral lento com passos invisíveis
Percorre os estágios de um círculo infinito
que começa na poeira e termina na estrela
e ao pó novamente retorna
lembrando ao passar ou melhor sonhando
suas vidas sucessivas e suas mortes.

O peixe fala com o seu Deus na borbulha
que é um trinado na água,
grito de anjo caído, privado de suas penas.
O homem tem apenas a palavra
para buscar a luz
ou viajar até o país sem ecos do nada.


HOMEM PLANETÁRIO

Eu saio na rua como todos os dias.
Fantasma entre as casas, eu me indago
a cor da hora, o rosto incerto
do azul que me olha
até arder em seu fogo mais recôndito.
A cidade me cativa, rede de pedra.
As ruas me perseguem
congregadas em torno
das praças ensolaradas, grandes tambores
forrados com a pele
de cordeiro do céu.
Eu sou aquele homem que assiste da ponte
os raios do rio,
vitrines das nuvens?
Fui Ulisses, Parsifal,
Hamlet e Sigismundo e muitos outros
antes de ser o personagem severo
com uma capa de vento que atravessa
o teatro da rua.

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